A PROPOSITO DA NOVELA SOLITARIO DE TCHALE FIGUEIRA
Tornou-se corrente indicar o nome e a obra de Germano de Almeida para marcar a transformação que se verificou na ficção cabo-verdiana que, sem virar as costas aos Claridosos, se empenhou em trazer para a literatura situações menos trágicas: as condições politicas actuais põem as populações ao abrigo da violência letal das fomes, tal como a escolarização adquiriu um carácter geral, abrangendo todas as ilhas.
Mas Germano de Almeida adaptou na sua ficção o gosto pela historia, que caracteriza os Mindelenses. Essa nova maneira de analizar a saga caboverdiana servindo-se da literatura é também adoptada por Tchalé Figueira, sobretudo pintor de talento, na sua "novela" SOLITARIO. Teria preferido que lhe chamasse "narrativa".
Uma leitura apressada reterá' sobretudo a maneira desenvolta como Tchalé integra no seu português os criolismos que lhe parecem necessários, não se deixando intimidar pelos juizos simplesmente gramaticais. Esta escrita retém a importância crucial da tradição - a qual revela sempre a existência de raízes africanas que muitos pretendem rejeitar nos dias de hoje - da percussao às praticas religiosas, incluindo o transe - tal como abre um espaço para integrar as praticas linguísticas escatológicas da sociedade cabo-verdiana.
A desenvoltura da escrita pode levar alguns - ou até muitos - a assinalar o tom aparentemente jocoso, ou até picaresco, desta novela. Seria um engano, pois o que a escrita revela é a tentativa de concentrar nesta escrita a historia subjectiva de Cabo Verde. Não se trata da historia cronologicamente organizada, mas antes de uma leitura dos momentos mais significativos das formas sociais do Arquipélago.
O próprio "facto colonial" aparece metaforizado, podendo nós identificar os "cortiças" com os portugueses, enquanto os Dry Gin sao, como é evidente, os ingleses, que deixaram atrás deles o cricket, o golf, o gosto para aperitivo ao fim da tarde.
Deve-se acrescentar que a novela não perde a sua ligação com a pintura, pois encontramos, nomeados directamente, ou sugeridos por uma metáfora ( por exemplo Van Gogh aparece como o pintor de orelha cortada), Andy Warol transformado em..., etc. E assim como Jack Pollok. E, para não deixar duvidas no que se refere à sua proporia pintura, Tchalé só' da' noticia do movimento Pop Art.
Este quadro intelectual que tanto diverge do catalogo da Claridade, é completado por algumas referencias a personagens que modificaram substancialmente a própria leitura do corpo humano e das suas funções como Sigmund Freud , que nos abriu o caminho para as grandes planícies do inconsciente.
A familiaridade com que Tchalé trata estas figuras - às quais convém acrescentar Homero, Cervantes, Dante, Mozart, A.Machado, o cortiça da Cunhal, W. Reich, Lorca, Unamuno, Hitler, Moisés, Amilcar Cabral, Stravinsky, nhô Balta e os irmaos Grim - grupo que mostra a densidade da cultura ocidental, é um outro aspecto importante. .
O autor espera que os leitores, sobretudo os cabo-verdianos, disponham da cultura indispensável para nao tropeçar na semântica do texto.
Que nos conta ele? Nada mais, nada menos do que o destino trágico das populações obrigadas a viver na Republica das Areias, sem agua - quer dizer sem chuvas - e sem verdes ou simplesmente sombras. Um dia estas populações sao informadas de que a autoridade do Norte, deram ordens para a sua transferência para ilhas caracterizadas por chuvas abundantes e constantes, la' tudo seria verde, uma espécie de Paraíso para estas populações dominadas há' séculos pelo excesso de areias e da secura irremediável.
Na historia politica e cultural de Cabo Verde pode pensar-se que esta situação se refere à São Tomé e Príncipe, tanto mais que esta nova regiao é a Papagaiolandia. Como é sabido a única ilha que é - ou foi - densamente povoada pelos papagaios cinzentos é a do Príncipe, onde trabalharam milhares de cabo-verdianos nas roças existentes.
O que é certo é a oposição entre areia e não chuva/ e chuva, quer dizer água doce e não areia. Tal podia ser a maneira de indicar uma equação capaz de compreender a intenção de um texto do qual não falta uma certa dose de provocação.
Tchalé Figueira não perde de vista um dos seus objectivos principais: denunciar as escolhas civilizacionais das potências do Grande Norte que projectam transformar as ilhas da areia em meros cemitérios de lixo atómico. O que permite evocar a crueldade inútil do bombardeamento atómico de duas cidades japonesas (Hiroshima e Nagasaki).
A tarefa do Norte recebe a ajuda vital do Grande Profeta do Ocidente que possui a "Nota Verde", os dólares que circulam universalmente para dar força ao lema norte-americano: "confiemos em Deus".
A denuncia veemente do Tchalé Figueira atinge também o pessoal das grandes organizações internacionais, tais Miss Mary, que se lança na pilhagem das criações artísticas das populações autóctones, não para salvaguardar mas antes para as leiloar na Sotebys. Obrigados a abandonar o seu nicho secular, os nativos da Republica das Areias são embarcados para ser transferidos para o Sul, mais perto do Equador (como acontece com o Arquipélago de S. Tomé e Príncipe).
Evocando também a historia do Arquipélago, Tchalé Figueira assinala algumas praticas repressivas do salazarismo que envolvem a dissolução da Maçonaria, levada a cabo por um cortiça, assim como do Tarrafal, onde se misturavam cortiças e negros.
Nem esta falsa fraternidade, imposta pela repressão pode levar o Tchalé a esquecer as condições da escravatura, pois os portugueses utilizaram o arquipélago como deposito de escravos, que deviam aprender a sua nova condição sob a autoridade do poder branco dos cortiças. O carácter reivindicativo da ficção - que também aparece na pintura - encontra nesta ficção a sua completa dimensão.
Direi ainda que Chiquinho de Baltasar Lopes era radicalmente nao-português, Tchalé da' um passo em frente, denunciando o colonialismo dos cortiças e dos dry-gin.
Estamos perante uma escrita que se apoia na libertação da palavra - no caminho dos surrealistas - e que não hesita em integrar na sua língua portuguesa todos os criolismos que lhe parecem indispensáveis para tornar compreensível esta "novela". Esta fidelidade ao crioulo confirma-se no final da novela; si ka tem tchuva.../morrê di sêde/ Si tchuva bem.../morrê fogode.
A crueldade do destino aparece na última frase: E a agua subia, subia, subia...
Alfredo Margarido
Mas Germano de Almeida adaptou na sua ficção o gosto pela historia, que caracteriza os Mindelenses. Essa nova maneira de analizar a saga caboverdiana servindo-se da literatura é também adoptada por Tchalé Figueira, sobretudo pintor de talento, na sua "novela" SOLITARIO. Teria preferido que lhe chamasse "narrativa".
Uma leitura apressada reterá' sobretudo a maneira desenvolta como Tchalé integra no seu português os criolismos que lhe parecem necessários, não se deixando intimidar pelos juizos simplesmente gramaticais. Esta escrita retém a importância crucial da tradição - a qual revela sempre a existência de raízes africanas que muitos pretendem rejeitar nos dias de hoje - da percussao às praticas religiosas, incluindo o transe - tal como abre um espaço para integrar as praticas linguísticas escatológicas da sociedade cabo-verdiana.
A desenvoltura da escrita pode levar alguns - ou até muitos - a assinalar o tom aparentemente jocoso, ou até picaresco, desta novela. Seria um engano, pois o que a escrita revela é a tentativa de concentrar nesta escrita a historia subjectiva de Cabo Verde. Não se trata da historia cronologicamente organizada, mas antes de uma leitura dos momentos mais significativos das formas sociais do Arquipélago.
O próprio "facto colonial" aparece metaforizado, podendo nós identificar os "cortiças" com os portugueses, enquanto os Dry Gin sao, como é evidente, os ingleses, que deixaram atrás deles o cricket, o golf, o gosto para aperitivo ao fim da tarde.
Deve-se acrescentar que a novela não perde a sua ligação com a pintura, pois encontramos, nomeados directamente, ou sugeridos por uma metáfora ( por exemplo Van Gogh aparece como o pintor de orelha cortada), Andy Warol transformado em..., etc. E assim como Jack Pollok. E, para não deixar duvidas no que se refere à sua proporia pintura, Tchalé só' da' noticia do movimento Pop Art.
Este quadro intelectual que tanto diverge do catalogo da Claridade, é completado por algumas referencias a personagens que modificaram substancialmente a própria leitura do corpo humano e das suas funções como Sigmund Freud , que nos abriu o caminho para as grandes planícies do inconsciente.
A familiaridade com que Tchalé trata estas figuras - às quais convém acrescentar Homero, Cervantes, Dante, Mozart, A.Machado, o cortiça da Cunhal, W. Reich, Lorca, Unamuno, Hitler, Moisés, Amilcar Cabral, Stravinsky, nhô Balta e os irmaos Grim - grupo que mostra a densidade da cultura ocidental, é um outro aspecto importante. .
O autor espera que os leitores, sobretudo os cabo-verdianos, disponham da cultura indispensável para nao tropeçar na semântica do texto.
Que nos conta ele? Nada mais, nada menos do que o destino trágico das populações obrigadas a viver na Republica das Areias, sem agua - quer dizer sem chuvas - e sem verdes ou simplesmente sombras. Um dia estas populações sao informadas de que a autoridade do Norte, deram ordens para a sua transferência para ilhas caracterizadas por chuvas abundantes e constantes, la' tudo seria verde, uma espécie de Paraíso para estas populações dominadas há' séculos pelo excesso de areias e da secura irremediável.
Na historia politica e cultural de Cabo Verde pode pensar-se que esta situação se refere à São Tomé e Príncipe, tanto mais que esta nova regiao é a Papagaiolandia. Como é sabido a única ilha que é - ou foi - densamente povoada pelos papagaios cinzentos é a do Príncipe, onde trabalharam milhares de cabo-verdianos nas roças existentes.
O que é certo é a oposição entre areia e não chuva/ e chuva, quer dizer água doce e não areia. Tal podia ser a maneira de indicar uma equação capaz de compreender a intenção de um texto do qual não falta uma certa dose de provocação.
Tchalé Figueira não perde de vista um dos seus objectivos principais: denunciar as escolhas civilizacionais das potências do Grande Norte que projectam transformar as ilhas da areia em meros cemitérios de lixo atómico. O que permite evocar a crueldade inútil do bombardeamento atómico de duas cidades japonesas (Hiroshima e Nagasaki).
A tarefa do Norte recebe a ajuda vital do Grande Profeta do Ocidente que possui a "Nota Verde", os dólares que circulam universalmente para dar força ao lema norte-americano: "confiemos em Deus".
A denuncia veemente do Tchalé Figueira atinge também o pessoal das grandes organizações internacionais, tais Miss Mary, que se lança na pilhagem das criações artísticas das populações autóctones, não para salvaguardar mas antes para as leiloar na Sotebys. Obrigados a abandonar o seu nicho secular, os nativos da Republica das Areias são embarcados para ser transferidos para o Sul, mais perto do Equador (como acontece com o Arquipélago de S. Tomé e Príncipe).
Evocando também a historia do Arquipélago, Tchalé Figueira assinala algumas praticas repressivas do salazarismo que envolvem a dissolução da Maçonaria, levada a cabo por um cortiça, assim como do Tarrafal, onde se misturavam cortiças e negros.
Nem esta falsa fraternidade, imposta pela repressão pode levar o Tchalé a esquecer as condições da escravatura, pois os portugueses utilizaram o arquipélago como deposito de escravos, que deviam aprender a sua nova condição sob a autoridade do poder branco dos cortiças. O carácter reivindicativo da ficção - que também aparece na pintura - encontra nesta ficção a sua completa dimensão.
Direi ainda que Chiquinho de Baltasar Lopes era radicalmente nao-português, Tchalé da' um passo em frente, denunciando o colonialismo dos cortiças e dos dry-gin.
Estamos perante uma escrita que se apoia na libertação da palavra - no caminho dos surrealistas - e que não hesita em integrar na sua língua portuguesa todos os criolismos que lhe parecem indispensáveis para tornar compreensível esta "novela". Esta fidelidade ao crioulo confirma-se no final da novela; si ka tem tchuva.../morrê di sêde/ Si tchuva bem.../morrê fogode.
A crueldade do destino aparece na última frase: E a agua subia, subia, subia...
Alfredo Margarido
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