CONTOS DE BASILEIA: UMA PROPOSTA DE VIAGEM PELO TERRALONGISMO ZERO
Por Filinto Elísio
Em primeiro lugar, para agradecer ao autor Tchalé Figueira e ao editor Giordano Custódio, da Dada Editora, por me terem convidado a celebrar o lançamento de Contos de Basileia. Igualmente, agradecer a oportunidade de partilhar a apresentação da obra com Manuel Brito-Semedo, portador de peso e medida, ciência toda, para dissecar o mérito literário desta colectânea.
Faço uma primeira advertência: sendo escritor e não analista ou crítico literário, não esperem das minhas palavras incursões técnicas e remissivas académicas nesta minha fala. Como diria Michel Maffesoli, em O Tempo das Tribos, «(...) ainda que isso irrite certos patrulhadores do saber institucional, a atribulada e imperfeita vida do dia-a-dia não deixa de produzir o verdadeiro ‘co-naissance comum’». Venho a este livro como um ‘co-naisseur comum’. Quase aquilo que Maquiavel, sempre tão subtil, chamou de ‘pensamento da praça pública’.
Faço uma segunda advertência para vos dizer do que pretendo falar: da surpresa deste livro e de Tchalé Figueira, um confrade da arte, habitante da imensa mátria da existência e que, sistematicamente, qual Sharazade em Mil e Uma Noites, o que conta a seguir encanta mais que o anterior. Sharazade, reza o mistério, fê-lo sob signo da morte, Tchalé Figueira fá-lo sob signo da existência, de consequente existencialismo, não sendo aquele drama (morte) maior que este (existência), todavia.
O que se contém, pois, em Contos de Basileia? Um conjunto de dez contos, sobre vivencias e alteridades não de um emigrante típico ou, melhor, de um emigrante tipo, mas de um errante, elemento bem mais atípico em paragens nossas, que se torna andarilho mais pela fome da palavra que de pão e mais pela sede tão bíblica quão freudiana, senão mesmo quixotesca, de ver e sentir o mundo que do acantonado e tão localista «querer ficar e ter de partir». Nesta colectânea de contos, o ter partido palpita, a par do «destino de crioulo», o existencialismo de Crioulo Cidadão do Mundo.
A produção oficinal deste livro transita do campo da curta ficção para os domínios de nota memorialística de feição biográfica, abrangendo uma gama considerável de perspectivas vivenciais e paisagísticas, com um enfoque predominantemente acentuado para a Cidade Suíça de Basileia. Sente-se na personagem Silva, que salta as fronteiras de cada conto, um rastro do autor ao mesmo tempo que os recursos do fantástico lhe turvam as evidências de retrato realista ou, quem sabe, lhe trazem luzes tão claras que ofuscam, um vrai ensaio sobre a cegueira.
Não se pensem, entrementes, tais contos unicamente pela perspectiva do retrato cabo-verdiano e do conflito contigencial de crioulo na sua saga de Terra Longe. É viagem de Terralongismo Zero. Claro que na sua escrita estão também presentes sinais de vida crioula, os cenários explícitos ou implícitos das vivencias cabo-verdianas, tanto nas ilhas como na Diáspora, mas sobressaem aqui as inquietações metafísicas e os fragmentos de interrogações, as obsessões e as perplexidades de um ser ‘deslocado’ da sua Cultura Matricial para, em conflito identitário, enfrentar o multiculturalismo, com os seus riscos e com as suas fortunas.
O narrador não emigra, mas transmigra-se para uma cidade interior suíça, na vizinhança de França e da Alemanha e cortada pelo rio Reno, fundada milenarmente pelos romanos e onde viveram personalidades como Erasmo de Roterdão, Karl Gustav Jung e Nietzsche. Na Basileia – Campo, o belo tinto Mutenzen revela o porque dos vinhos serem bebida dos deuses. Nem vos conto…mas Tchalé Figueira esmiúça tais paisagens desse ‘crossroad europeu’ e mescla-as com a sua irrecusável matriz crioula. É o Silva…
Ao invés de insurgir, exsurge aqui uma linguagem crua e ao mesmo tempo rica de imagens e simbolizações, principalmente aquelas que têm no universo do homem erudito o seu casulo e as suas formas de disseminação, tal qual, no conto MCM, o protagonista pondera quão ‘engenhosa a forma como Borges descreve o ridículo soberano da Babilónia e o seu labirinto em tão poucas palavras?’. Exsurge igualmente quando, sempre em discurso directo, se interpõe com Alejo Carpentier em que, no conto III, afirma ‘mergulho-me no real imaginário de histórias e tramas só dignas mesmo de um bom orquestrador como é Carpentier com a sua linguagem nada fácil de entender mas ele tem aquele toque de génio e aí estão esses fascinantes episódios que consumo de forma impetuosa’.
Tchalé Figueira é um artista plural e multifacetado. Não ‘filho de um rei de uma ilha de Cabo Verde’, como quis a personagem Claire Niky em LXVII, numa vernissage de artes plásticas, mas sim uma espécie de ‘pirata de sete mares’ ou, estando em Basileia, ‘pirata de água doce’. Toca as mais diversas artes da escansão estética e vai da pintura à escritura (poesia e prosa), passando pela música. Há quem diga sobre as viagens para os mares do teatro e do cinema. A pintura, de longe, parece ser o seu supremo campo de domínio, mas não é assim tão evidente tal pensar.
No poeta, no contista, no músico ou no pintor que manipula pincéis e paletas habita uma cosmovisão ontológica que se quer realidade cambiante; ou nele se funde uma liturgia de formas e alteridades em cujo eixo de gravitação se cruzam contrários. E é deste ponto de tensão que emerge a arte de Tchalé Figueira.
Ele é mais do que aquilo que aparenta ser e muito mais ainda do que aquilo que dele se possa imaginar, isto é, é mais do que aquilo que esta sua «paridura» - Contos de Basileia - pode revelar.
Um crítico literário talvez aqui quisesse multiplicar e potenciar teorias ou escolas, tendências estéticas ou didácticas para enquadrar as perspectivas deste livro de contos. Mas não é isto o que penso a respeito do Contos de Basileia. Acho tão-somente que Tchalé Figueira é um artista que toma a criação, ela por ela, como ponto de partida.
E a criação como ponto de partida é tudo o que importa a Tchalé Figueira, especialmente quando se debruça sobre o ofício de escrituração dos contos. É contista, sim, e escritor, no sentido mais justo da palavra.
Leiam este livro. Às vezes, para aprofundarmos sobre os trânsitos do multiculturalismo que a obra, quiçá sem querer, propõe. E outras vezes, por tentação mesmo, de entrarmos a dançar Sangue de Berona, em Basileia, com o entorno entre o crioulo e o alemão. Uma delícia. Bebam-no. De o ter bebido e degustado, posso testemunhar que o belo tinto Mutenzen, da região da Basileia, merece este brinde todo que nos propõe Tchalé Figueira. Prost!
Muito obrigado!
Por Filinto Elísio
Em primeiro lugar, para agradecer ao autor Tchalé Figueira e ao editor Giordano Custódio, da Dada Editora, por me terem convidado a celebrar o lançamento de Contos de Basileia. Igualmente, agradecer a oportunidade de partilhar a apresentação da obra com Manuel Brito-Semedo, portador de peso e medida, ciência toda, para dissecar o mérito literário desta colectânea.
Faço uma primeira advertência: sendo escritor e não analista ou crítico literário, não esperem das minhas palavras incursões técnicas e remissivas académicas nesta minha fala. Como diria Michel Maffesoli, em O Tempo das Tribos, «(...) ainda que isso irrite certos patrulhadores do saber institucional, a atribulada e imperfeita vida do dia-a-dia não deixa de produzir o verdadeiro ‘co-naissance comum’». Venho a este livro como um ‘co-naisseur comum’. Quase aquilo que Maquiavel, sempre tão subtil, chamou de ‘pensamento da praça pública’.
Faço uma segunda advertência para vos dizer do que pretendo falar: da surpresa deste livro e de Tchalé Figueira, um confrade da arte, habitante da imensa mátria da existência e que, sistematicamente, qual Sharazade em Mil e Uma Noites, o que conta a seguir encanta mais que o anterior. Sharazade, reza o mistério, fê-lo sob signo da morte, Tchalé Figueira fá-lo sob signo da existência, de consequente existencialismo, não sendo aquele drama (morte) maior que este (existência), todavia.
O que se contém, pois, em Contos de Basileia? Um conjunto de dez contos, sobre vivencias e alteridades não de um emigrante típico ou, melhor, de um emigrante tipo, mas de um errante, elemento bem mais atípico em paragens nossas, que se torna andarilho mais pela fome da palavra que de pão e mais pela sede tão bíblica quão freudiana, senão mesmo quixotesca, de ver e sentir o mundo que do acantonado e tão localista «querer ficar e ter de partir». Nesta colectânea de contos, o ter partido palpita, a par do «destino de crioulo», o existencialismo de Crioulo Cidadão do Mundo.
A produção oficinal deste livro transita do campo da curta ficção para os domínios de nota memorialística de feição biográfica, abrangendo uma gama considerável de perspectivas vivenciais e paisagísticas, com um enfoque predominantemente acentuado para a Cidade Suíça de Basileia. Sente-se na personagem Silva, que salta as fronteiras de cada conto, um rastro do autor ao mesmo tempo que os recursos do fantástico lhe turvam as evidências de retrato realista ou, quem sabe, lhe trazem luzes tão claras que ofuscam, um vrai ensaio sobre a cegueira.
Não se pensem, entrementes, tais contos unicamente pela perspectiva do retrato cabo-verdiano e do conflito contigencial de crioulo na sua saga de Terra Longe. É viagem de Terralongismo Zero. Claro que na sua escrita estão também presentes sinais de vida crioula, os cenários explícitos ou implícitos das vivencias cabo-verdianas, tanto nas ilhas como na Diáspora, mas sobressaem aqui as inquietações metafísicas e os fragmentos de interrogações, as obsessões e as perplexidades de um ser ‘deslocado’ da sua Cultura Matricial para, em conflito identitário, enfrentar o multiculturalismo, com os seus riscos e com as suas fortunas.
O narrador não emigra, mas transmigra-se para uma cidade interior suíça, na vizinhança de França e da Alemanha e cortada pelo rio Reno, fundada milenarmente pelos romanos e onde viveram personalidades como Erasmo de Roterdão, Karl Gustav Jung e Nietzsche. Na Basileia – Campo, o belo tinto Mutenzen revela o porque dos vinhos serem bebida dos deuses. Nem vos conto…mas Tchalé Figueira esmiúça tais paisagens desse ‘crossroad europeu’ e mescla-as com a sua irrecusável matriz crioula. É o Silva…
Ao invés de insurgir, exsurge aqui uma linguagem crua e ao mesmo tempo rica de imagens e simbolizações, principalmente aquelas que têm no universo do homem erudito o seu casulo e as suas formas de disseminação, tal qual, no conto MCM, o protagonista pondera quão ‘engenhosa a forma como Borges descreve o ridículo soberano da Babilónia e o seu labirinto em tão poucas palavras?’. Exsurge igualmente quando, sempre em discurso directo, se interpõe com Alejo Carpentier em que, no conto III, afirma ‘mergulho-me no real imaginário de histórias e tramas só dignas mesmo de um bom orquestrador como é Carpentier com a sua linguagem nada fácil de entender mas ele tem aquele toque de génio e aí estão esses fascinantes episódios que consumo de forma impetuosa’.
Tchalé Figueira é um artista plural e multifacetado. Não ‘filho de um rei de uma ilha de Cabo Verde’, como quis a personagem Claire Niky em LXVII, numa vernissage de artes plásticas, mas sim uma espécie de ‘pirata de sete mares’ ou, estando em Basileia, ‘pirata de água doce’. Toca as mais diversas artes da escansão estética e vai da pintura à escritura (poesia e prosa), passando pela música. Há quem diga sobre as viagens para os mares do teatro e do cinema. A pintura, de longe, parece ser o seu supremo campo de domínio, mas não é assim tão evidente tal pensar.
No poeta, no contista, no músico ou no pintor que manipula pincéis e paletas habita uma cosmovisão ontológica que se quer realidade cambiante; ou nele se funde uma liturgia de formas e alteridades em cujo eixo de gravitação se cruzam contrários. E é deste ponto de tensão que emerge a arte de Tchalé Figueira.
Ele é mais do que aquilo que aparenta ser e muito mais ainda do que aquilo que dele se possa imaginar, isto é, é mais do que aquilo que esta sua «paridura» - Contos de Basileia - pode revelar.
Um crítico literário talvez aqui quisesse multiplicar e potenciar teorias ou escolas, tendências estéticas ou didácticas para enquadrar as perspectivas deste livro de contos. Mas não é isto o que penso a respeito do Contos de Basileia. Acho tão-somente que Tchalé Figueira é um artista que toma a criação, ela por ela, como ponto de partida.
E a criação como ponto de partida é tudo o que importa a Tchalé Figueira, especialmente quando se debruça sobre o ofício de escrituração dos contos. É contista, sim, e escritor, no sentido mais justo da palavra.
Leiam este livro. Às vezes, para aprofundarmos sobre os trânsitos do multiculturalismo que a obra, quiçá sem querer, propõe. E outras vezes, por tentação mesmo, de entrarmos a dançar Sangue de Berona, em Basileia, com o entorno entre o crioulo e o alemão. Uma delícia. Bebam-no. De o ter bebido e degustado, posso testemunhar que o belo tinto Mutenzen, da região da Basileia, merece este brinde todo que nos propõe Tchalé Figueira. Prost!
Muito obrigado!
Um comentário:
Caro Tchale Figueira, peço o favor de indicar onde poderemos procurar o seu livro em Portugal, e, caso não ande por cá, por onde andará que se pudesse encomendar. Grata :-)
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