3 de jan. de 2011

ADRIANO MIRANDA LIMA: SOBRE O BAIRRISMO ESCREVEU:


BAIRRISMO PRIMÁRIO E AVILTANTE

Desde a alvorada da consciência que a diferença face ao outro se tornou fonte de eclosão de baixos sentimentos humanos. O homem sempre se angustiou no confronto com o seu semelhante. Seja pela distinção de características físicas, de poder económico ou de atributos culturais, ou pelo simples temor do desconhecido, desde cedo o homem receou o seu próximo e, nas suas construções mentais, à realidade percepcionada a cada instante logo procurou contrapor a sua antinomia, como reacção natural para alimentar a insídia ou descarregar os medos. O comportamento reactivo pode variar entre o simples afrontamento emotivo e a gravosa declaração de conflito aberto. É neste caldo de comportamento cultural que radica o fenómeno mais soft que se designa por Bairrismo, normalmente caracterizado por uma rivalidade mais ou menos mitigada existente no seio de um mesmo povo e ocasionada por circunstâncias históricas ou geográficas.
O Bairrismo pode, pois, consistir simplesmente numa disputa saudável e esfusiante, muitas vezes de contornos folclóricos ou desportivos, sem outro intuito que não fomentar a emulação e o estímulo competitivo. Mas pode ser também um fenómeno bem mais perturbante e de consequências lesivas para a unidade nacional de um povo, susceptível de afectar o seu desenvolvimento harmónico, justo e equilibrado. É o que acontece quando a política se serve do Bairrismo para acertar uma alegada conta-corrente com a História ou para atingir fins identificados com um certo projecto ideológico ou ideia de Estado.
No caso da fundação do Estado cabo-verdiano, é voz corrente que houve deliberada intenção de marginalizar a ilha de S. Vicente desde o começo, por razões que não estão perfeitamente esclarecidas, mas que certamente se prendem com motivações políticas e culturais. Mas o que ninguém pode negar é que a fundação de uma capital macrocéfala tinha de resultar forçosamente na drástica protelação da ilha de S. Vicente, ao ser-lhe coarctada qualquer intervenção no funcionamento orgânico do Estado, e com isso reduzindo, se não anulando, o protagonismo que ela no passado assumiu do ponto de vista cultural e social. Ou seja, anulando-lhe a possibilidade de ser um pólo estruturante da organização administrativa do Estado, em paridade com a ilha de Santiago.
Efectivamente, quando a totalidade dos órgãos de soberania e das estruturas superiores da administração pública é instalada numa única ilha, como foi o caso concreto, reside aí o propósito de condicionar as linhas de força do funcionamento e do crescimento do neófito Estado. Veja-se que no caso da Região Autónoma dos Açores, um território semelhante ao nosso do ponto de vista geográfico, a solução encontrada foi completamente diferente. Os três mais importantes órgãos da soberania regional foram instalados, respectivamente, em cada uma das ilhas principais dos três grupos insulares. O Governo, em S. Miguel, capital, o Representante da República, na Terceira, e a Assembleia Legislativa, na Horta.

Em Cabo Verde apostou-se numa solução macrocéfala, concentracionária, com todos os seus vícios sistémicos, condicionamentos centrípetos e emperramentos do desenvolvimento equilibrado e simétrico do novo Estado. Mas uma das suas consequências mais penosas é de natureza psicológica, logo com efeitos corrosivos no cimento da unidade e da solidariedade nacional, valores que se crêem fundamentais e quase sagrados num país de escassos recursos. Com efeito, toda esta situação vem contribuindo para acentuar um sentimento bairrista, muito negativo, acicatado pelo facto de uns se sentirem no núcleo das prioridades e outros se julgarem nas margens do sistema.

Mas o dramático é quando o Bairrismo é inoculado com o veneno da política e entra nas veias da dinâmica social, muitas vezes propagado por um jornalismo comprometido com o status quo.

Se dúvidas tivesse, deixei de as ter quando li uma reportagem publicada no jornal on-line A Semana sobre a passagem do ano em Cabo Verde. Intitula-se “Cabo Verde dançou até o sol raiar” e foi publicada em 01 Janeiro 2011. Ora, quando li a reportagem, esperava encontrar uma narrativa factual, isenta e objectiva, que noticiasse sobre o que aconteceu de verdade em todas as ilhas, em proporção com a sua dimensão social e cultural, e, sobretudo, tendo em conta o seu historial neste tipo de festividade. A reportagem continha um total de 713 palavras, destas 595 dedicadas à cidade da Praia e apenas 118 às restantes ilhas. Mas o que surpreende e provoca irreprimível náusea é a exclusão pura e simples da ilha de S. Vicente do evento da passagem do ano, como se ela tivesse sido apagada da existência por um qualquer cataclismo vulcânico. No meu comentário à notícia, fui veemente, mas respeitoso, na denúncia dessa aviltante omissão, que por certo não tem outra explicação senão uma maquinada intenção de desfeitear a população da ilha.

E logo a ilha que é o verdadeiro ex-libris nacional nesse como em todo o género de festejos em que a cultura do nosso povo se evidencia e se projecta em toda a acepção da sua mais viva tipicidade e singularidade. Logo a ilha em que foi criado o hino de Boas Festas nacional, que os mindelenses partilham gostosamente com todos os seus irmãos, incluindo os da capital, e que hoje se ouve saudosamente em todos os cantos do mundo onde vivam cabo-verdianos. Mas o jornal A Semana não se deu conta da tamanha incongruência que foi ilustrar imagens filmadas das Boas Festas praienses com o hino que nasceu no Mindelo, fazendo-nos lembrar a rábula do gato escondido com o rabo de fora. Poder-se-á pensar que o subconsciente traiu quem quis manipular arbitrariamente a realidade, permitindo que um ignóbil preconceito escravizasse a sua consciência moral e hipotecasse a sua deontologia profissional, se é que sabe o significado da palavra.

Como referi anteriormente, inseri no espaço próprio da reportagem um comentário pessoal, dizendo que acreditava que a Direcção do Jornal, pessoa de bem, não iria pactuar com tão despudorada ofensa ao jornalismo e ao público leitor. E que não deixaria de agir disciplinarmente.

O meu comentário não foi publicado, ao contrário de outros. E a notícia passou ao arquivo e à história das nossas sórdidas mancomunações.


Lisboa, 3 de Janeiro de 2011


Adriano Miranda Lima

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