Alfredo Margarido : o lusófono necessário para a lusofonia
Um grande número dos leitores de Alfredo Margarido, inclusive africanos, pensam que se trata de um escritor caboverdiano ou angolano, devido à dimensão da África não só nos seus estudos e ensaios, mas também do seu apoio à luta de libertação dos povos das antigas colónias portuguesas deste continente. Houve quem me tivesse dito que até pensava que o Margarido fosse negro. Na verdade, Margarido viveu a África, por dentro e por fora, numa fraternal solidariedade com os africanos das colónias portuguesas, em Lisboa, na Casa dos Estudantes do Império e mais tarde em São Tomé, Angola, Moçambique, Cabo Verde e nas diásporas lusófonas.
A literatura, dizia Margarido, teria sido o único espaço para o debate “entrelinhas” de ideias e propostas no sistema salazarista. Assim, a sua obra, o seu pensamento político começa por passar pela literatura iniciada em Portugal nos anos cinquenta do século passado antes de encontrar todas as liberdades em França, passando da literatura dos países africanos de língua portuguesa à historia e política coloniais, economia, sindicalismo, escravatura, resistência anti-colonial, sempre com um rigor crítico que nem sempre agrada aos próprios africanos. E é nesse aspecto que ele se diferencia pela sua ousadia e independência da maior parte dos críticos literários do período colonial, sem medo de desagradar aos censores, aos fiéis do sistema colonial e do partido único, para ir ao fundo dos problemas dos países colonizados.
A influência de um grande intelectual francês como Jean Paul Sartre, a quem ele dedicou um ensaio em Portugal, foi importante nas suas escolhas políticas. Alfredo Margarido pertence a uma geração do após Guerra que apostou na luta anti-fascista e que mais tarde se estendeu, nem sempre com facilidades, à luta anti-colonial. Foi dessa aprendizagem com anti-fascistas portugueses e africanos, como Mário Pinto de Andrade, Lúcio Lara, Amílcar Cabral, Marcelino dos Santos, Agostinho Neto e de Cruzeiro Seixas (artista plástico português a residir em Angola), que iniciou o seu combate a favor da autodeterminação dos povos africanos. Mas, enquanto que o grupo africano partia para a Europa nos anos cinquenta à procura de armas teóricas para melhor avançar para a luta política e armada, ele fazia o percurso inverso, partindo para a África, com vivência demorada em São Tomé e Príncipe e Angola, de onde será expulso pela administração colonial, por denunciar o luso-tropicalismo e os efeitos colaterais de uma absurda colonização que não aceitava a igualdade racial e nem a descolonização.
Margarido teve um papel importante na Casa dos Estudantes do Império, que seria fechada em 1965 devido à atribuição de um prémio literário ao escritor angolano Luandino Vieira. Organizou várias antologias de poesia dos países africanos e ganhou mesmo um prémio literário em 1962 por um ensaio dedicado ao poeta angolano Agostinho Neto. Também, sem assumir qualquer responsabilidade, apoiou o ensaio de Onésimo Silveira “Consciencialização na Literatura Caboverdiana”, um ensaio ainda polémico; e a ele se deve a maior divulgação em França e no mundo do poema nacionalista “O Capitão Ambrósio”, da autoria de Gabriel Mariano, que trouxe clandestinamente de Portugal. Em Paris, a partir de 1964, continuou ligado à literatura dos países de língua portuguesa, tendo publicado uma antologia na livraria Presença Africana, dirigida pelo senegalês Alioune Diop, livraria essa que foi o refúgio de todos os homens políticos africanos, principalmente das colónias portuguesas, como Mário de Andrade, Marcelino dos Santos, Amílcar Cabral e outros. Influenciou muitos jovens escritores das colónias portugueses ao nível da poesia , do ensaio e das artes plásticas, numa perspectiva da luta de libertação, o que marcou a revolução cultural nos respectivos países depois das Independências.
Desde os anos cinquenta, Alfredo Margarido aparece na imprensa caboverdiana através do Boletim de Cabo Verde, dirigido sabiamente pelo advogado Bento Levy, onde comenta as obras dos poetas e romancistas Claridosos que mais tarde foram incluídos no seu livro “Estudos sobre literaturas das Nações Africanas de Lingua Portuguesa”. Para o grande escritor caboverdiano António Aurélio Gonçalves, Alfredo Margarido era um crítico muito exigente mas que possuía um lugar especial na crítica da literatura dos países de língua portuguesa.
Conhecemo-nos nos meses que seguiram ao movimento dos estudantes de Maio de 1968 onde teve intervenções nos debates e reuniões que marcaram o movimento. O historiador Marc Ferro, de quem foi um grande colaborador, considerou-o como uma das figuras mais importantes dos debates universitários durante aquele período revolucionário de Maio de 1968. Comecei por frequentar a sua casa ao lado da Praça de Saint Michel, onde recebia estudantes das colónias portuguesas e muitos amigos portugueses, de que destaco o nosso Branquinho Pequeno, sempre de bom humor e aberto a todas as discussões. Depois residiu na Rua de Saint Hilaire, em seguida na rue Fagon em Paris V e ulteriormente na rua de l’Essai onde permaneceu até regressar definitivamente a Portugal, mas vivendo sempre perto do Quartier Latin que tanto marcou a sua vida universitária e política.
Teve também um papel importante ainda nos princípios dos anos setenta na introdução do ensino das literaturas dos países de língua portuguesa na Faculdade de Paris VIII – Vincennes a convite do Professor José Terra, do Departamento de Português. A introdução desta matéria nos estudos universitários ajudou muito os estudantes a descobrirem a verdadeira história dos respectivos países. Margarido incentivava os seus alunos caboverdianos, guineenses, angolanos, moçambicanos a fazerem teses e mestrados, como foi o meu caso, a lançarem-se no movimento associativo e a debater os problemas coloniais, pondo a sua biblioteca à disposição de todos. Em 1973 é convidado por Jean Copans a colaborar num célebre volume sobre a crítica da antropologia e do imperialismo, editado em 1975 pelas edições François Maspero, que põe em questão o papel da antropologia ao serviço do colonialismo português e do imperialismo. Ele demonstra que a antropologia nem sempre esteve ao lado dos combatentes da liberdade e acusa alguns antropólogos portugueses de terem fornecido as armas teóricas para a guerra colonial. E denuncia em especial o luso-tropicalismo, ou seja a falsa antropologia do brasileiro Gilberto Freire, que fazia do Brasil o modelo de integração racial quando foi o último país da América do Sul a abolir a escravatura. Aliás, teve desde 1957 um associado na crítica contra o antropólogo brasileiro Gilberto Freira na pessoa do poeta e romancista caboverdiano Baltasar Lopes da Silva, que escreveu “Cabo Verde, visto por Gilberto Freire”. O antropólogo brasileiro em visita às colónias portuguesas, a convite do Governo de Salazar, teria tecido alguns dislates sobre a cultura caboverdiana. Mais tarde, a partir de 1975, acompanhei-o no Centro de Recherches Africaines da Sorbonne, onde esteve associado a Michel Devisse, Yves Persan, Jean Boulègue em cursos sobre a história da África e de onde saíram alguns historiadores africanos, inclusive das antigas colónias portuguesas e mesmo de Portugal.
Os acontecimentos do 25 de Abril, que pôs termo ao regime de Salazar e abriu as portas à Independência das colónias, não o surpreenderam. Não, como muita gente pretende, que ele estivesse informado da intervenção do Movimento das Forças Armadas por um almirante estar casado com uma irmã dele, mas sim como resultado das suas próprias análises políticas. Era da opinião de que nenhum regime colonialista por mais forte que fosse a nível militar tinha conseguido triunfar contra os movimentos de libertação e que o regime cedo ou tarde iria também cair, como já tinha acontecido com os franceses ou os americanos no Vietname. Outro aspecto importante e que prova a sua fidelidade aos ideais da liberdade : manteve-se distante em relação aos governos estabelecidos nas antigas colónias portuguesas a partir do momento que se criaram os partidos únicos segundo o modelo leninista, embora as várias solicitações e convites dos governos que tão bem conhecera durante a luta de libertação.
Margarido reconhecia a influência da França no seu percurso literário e universitário. Dizia que a França o tinha transformado, afastando-o assim da literatura. Aqui conheceu novas disciplinas, teve excelentes professores e amigos, que foram determinantes na sua carreira universitária, como os historiadores Elikia M’bokolo, Jean Dévisse, Claude Meulassous, Jean Boulègue, Jean Pierre Chrétien, Marc Ferro, Henry Persan, Catherine Coquery-Virdrovich, e antropólogos como Jean Copans e Roger Bastide e outros.
Dizia sempre que a Independência não resolvia tudo e que teríamos de estar preparados para outros problemas: se como anti-fascista e anti-colonialista se venceu um combate contra o salazarismo e o colonialismo não estava convencido da libertação imediata da herança colonial ou do suicídio das classes como preconizara Amílcar Cabral durante a luta nas matas da Guiné Bissau. E a história deu-lhe razão. Admirador confesso da obra de Fernão Mendes Pinto, escreve em 1994 “As surpresas da flora no tempo dos descobrimentos”, a demonstrar que não foram somente as riquezas do subsolo e da escravatura que enriqueceram a Europa, mas também os conhecimentos técnicos trazidos das viagens e a descoberta de novas civilizações que modernizaram a Europa. Também a botânica e a culinária europeia receberam novas plantas que os marinheiros trouxeram da sua aventura pelo mundo e que revolucionaram a gastronomia, como a mandioca, a batata, o ananás, o cajueiro, feijões, tabaco, milho, o cacau das Américas, a malagueta do Senegal, a banana do Congo, a cola da África, a canela, o coqueiro, a noz moscada, o cravo, as mangas, o chá da Ásia, todas essas plantas trazidas no bojo dos navios portugueses que transformaram o Mundo e serão a maior contribuição das descobertas marítimas portuguesas para a humanidade.
Uma outra preocupação de Alfredo Margarido foi a de estreitar as relações entre Portugal e o mundo lusófono. Na emigração, viu novas relações de solidariedade entre os emigrantes lusófonos e tirou as lições necessárias para uma nova lusofonia. Frequentava os bidonvilles da região parisiense, onde viviam emigrantes de todas as origens e, desses contactos fraternos, tirou o célebre ensaio “Elogio do bidonville” (ver Latitudes n°5) em que demonstra a solidariedade e a riqueza espiritual dos portugueses e outras comunidades que ali viviam. Enquanto que muitos sociólogos somente viam a miséria material dos emigrantes nos bidonvilles, ele descobria uma grande riqueza espiritual nos emigrantes, solidários e unidos na luta pela emancipação económica e espiritual. Para que Portugal fosse pluricontinental no plano cultural e espiritual, teria de romper com o passado colonial que foi horrendo nas suas colónias e criar novas dinâmicas sociais, económicas e culturais e estabelecer relações de respeito e fraternidade com os povos dos outros continentes que sempre exigiram dignidade e respeito. E quando após a Independência de Cabo Verde os emigrantes caboverdianos, que tanto tinham investido em Portugal na construção urbana, viram serem-lhes negado a renovação dos passaportes portugueses pelo facto de não poderem provar a origem portuguesa ou, melhor, por serem pretos (o que provocou desempregos e mesmo expulsões destes dos países da União Europeia), Margarido entrou de novo na luta, condenando o Governo Português e as suas embaixadas e consulados. No ano de 2000 publica “A lusofonia e os lusófonos : novos mitos portugueses”, com uma critica actual à lusofonia proposta pela CPLP. Sem uma nova visão das relações entre os lusófonos, que aliás não deve excluir as diásporas lusófonas da Europa, África e Américas, a lusofonia não passa duma balela, como dizia o escritor caboverdiano Luiz romano. Em França, várias associações caboverdianas e portuguesas, como a Solidariedade Caboverdiana e ACAP 77, organizaram diversas manifestações culturais, entre as quais o Festival da Canção Lusófona que lançou vários artistas caboverdianos como Teófilo Chantre, Dulce Matias, John Andrade, etc. E foi do encontro nesses festivais que saiu o projecto da revista Latitudes em que ele colaborou ao lado de outros como Daniel Lacerda, José de Barros, Dominique Stoenesco, revista essa que ainda continua a sair trimestralmente. A CPLP não pode fazer simplesmente a lusofonia dos chefes de Estado: a lusofonia tem que ser, como propõe Margarido, uma lusofonia dos povos que não ignora as diásporas dos países de língua oficial portuguesa.
Alfredo Margarido era uma pessoa assídua, assim como o mano Branquinho Pequeno, em todas as actividades culturais da Associação dos Caboverdianos em França - Solidariedade Caboverdiana, para a qual convidava os amigos de passagem por Paris. Foi por isso que o convidei a escrever o prefácio ao “Folclore Caboverdiano” de Pedro Monteiro Cardoso que foi um alumbramento pela importância na revisão da história cultural e politica de Cabo Verde, iniciada nos fins do século XIX . Ficou assim demonstrada que a luta para os direitos cívicos e a literatura caboverdiana não começaram em 1936 com a revista Claridade e nem em 1956 com a criação do PAIGC por Amílcar Cabral. Neste prefácio ele estuda os nativistas como Luis Loff de Vasconcelos, Eugénio Tavares, José Lopes, Pedro Monteiro Cardoso, o movimento pan-africanista em que participaram muitos caboverdianos nos princípios do século XX, a importância da emigração caboverdiana na América do Norte e a influência desta não somente a nível económico em Cabo Verde, mas também no plano social e cultural e que serve de tema a Baltasar Lopes da Silva no célebre romance Chiquinho. A cultura caboverdiana e, em especial, a sua literatura enriqueceu-se com esse prefácio que permitiu que se fizesse um recuo de mais cinquenta anos no estudo da literatura e da vida política e social caboverdiana. Um poema dedicado a Karl Marx em 1913 e o uso da greve, nesse mesmo ano, nas Companhias Inglesas, resultante da experiência americana dos emigrantes caboverdianos, demonstram a existência, já nos princípios do século XX, de uma consciência social da classe trabalhadora em São Vicente.
É de assinalar a sua comunicação na Cidade Universitária de Paris na homenagem a Baltasar Lopes, em Maio de 1989, e o excelente artigo publicado na revista Lusotopie, em 1994, chamado “Pour une histoire des geo-politiques culturelles du Cap Vert”» em que, mais uma vez, explica a originalidade de Cabo Verde, tanto no plano étnico como cultural no espaço africano. Também em Cabo Verde, de 1982 a 1990, colaborou com muita constância no jornal católico Terra Nova com artigos profundos que permitiram a muitos patrícios repensarem Cabo Verde e libertarem-se do pensamento único imposto pelo PAIGC.
Mas a música e as artes plásticas não ficaram de lado: Margarido publicou vários artigos sobre os pintores Victor Teixeira (Angola) e Tchalé Figueira (Cabo Verde). Também na revista Latitudes publicou diversas notas sobre a música caboverdiana e em especial um estudo sobre o CD “Ex-ilhas” (14 poemas de Luiz Silva e musicados por Jovino dos Santos).
Ele reconhecia que o seu exílio, associado à sua vivência com as comunidades emigradas, alargou profundamente a sua visão de Portugal e do mundo. Perdeu a cor e foi tão normal que as pessoas que o liam pensassem que fosse negro e africano de Cabo Verde ou Angola. Foi, pela sua vivência, o verdadeiro lusófono necessário, o modelo a seguir, para a realização da lusofonia não baseada na cor, mas sim em novas relações históricas a serem criadas entre os povos, tal como ele próprio viveu no seio dos emigrantes que se exprimem oficialmente na língua portuguesa.
A sua tese de doutoramento sobre a literatura caboverdiana na Universidade de Sorbonne, que à ultima hora decidiu não entregar, explicava com pormenores essa viagem à literatura caboverdiana com os caboverdianos de várias gerações com quem conviveu de perto nas comunidades caboverdianas em Portugal, em São Tomé e Príncipe, em Angola e França, partilhando reflexões sobre Cabo Verde e em especial sobre a sua literatura, cultura e mesmo sobre a unidade Cabo Verde-Guiné, desde os pan-africanistas aos escritores mais modernos. No cinquentenário da revista Claridade apresentou uma comunicação histórica que merece referência em estudos literários sobre Cabo Verde.
Alfredo Margarido foi condecorado pelo Governo de Cabo Verde em 2002 com a Medalha de primeira classe do Vulcão. A sua morte foi sentida em todo o mundo de língua oficial portuguesa e nas diásporas desses países. Morreu de pé sempre a lutar pelas suas ideias e sempre cheio de projectos. Ele merece que o seu nome seja dado a ruas e praças em todo o mundo de língua oficial portuguesa.
Paris 15/12/2011
Luiz Silva
Um grande número dos leitores de Alfredo Margarido, inclusive africanos, pensam que se trata de um escritor caboverdiano ou angolano, devido à dimensão da África não só nos seus estudos e ensaios, mas também do seu apoio à luta de libertação dos povos das antigas colónias portuguesas deste continente. Houve quem me tivesse dito que até pensava que o Margarido fosse negro. Na verdade, Margarido viveu a África, por dentro e por fora, numa fraternal solidariedade com os africanos das colónias portuguesas, em Lisboa, na Casa dos Estudantes do Império e mais tarde em São Tomé, Angola, Moçambique, Cabo Verde e nas diásporas lusófonas.
A literatura, dizia Margarido, teria sido o único espaço para o debate “entrelinhas” de ideias e propostas no sistema salazarista. Assim, a sua obra, o seu pensamento político começa por passar pela literatura iniciada em Portugal nos anos cinquenta do século passado antes de encontrar todas as liberdades em França, passando da literatura dos países africanos de língua portuguesa à historia e política coloniais, economia, sindicalismo, escravatura, resistência anti-colonial, sempre com um rigor crítico que nem sempre agrada aos próprios africanos. E é nesse aspecto que ele se diferencia pela sua ousadia e independência da maior parte dos críticos literários do período colonial, sem medo de desagradar aos censores, aos fiéis do sistema colonial e do partido único, para ir ao fundo dos problemas dos países colonizados.
A influência de um grande intelectual francês como Jean Paul Sartre, a quem ele dedicou um ensaio em Portugal, foi importante nas suas escolhas políticas. Alfredo Margarido pertence a uma geração do após Guerra que apostou na luta anti-fascista e que mais tarde se estendeu, nem sempre com facilidades, à luta anti-colonial. Foi dessa aprendizagem com anti-fascistas portugueses e africanos, como Mário Pinto de Andrade, Lúcio Lara, Amílcar Cabral, Marcelino dos Santos, Agostinho Neto e de Cruzeiro Seixas (artista plástico português a residir em Angola), que iniciou o seu combate a favor da autodeterminação dos povos africanos. Mas, enquanto que o grupo africano partia para a Europa nos anos cinquenta à procura de armas teóricas para melhor avançar para a luta política e armada, ele fazia o percurso inverso, partindo para a África, com vivência demorada em São Tomé e Príncipe e Angola, de onde será expulso pela administração colonial, por denunciar o luso-tropicalismo e os efeitos colaterais de uma absurda colonização que não aceitava a igualdade racial e nem a descolonização.
Margarido teve um papel importante na Casa dos Estudantes do Império, que seria fechada em 1965 devido à atribuição de um prémio literário ao escritor angolano Luandino Vieira. Organizou várias antologias de poesia dos países africanos e ganhou mesmo um prémio literário em 1962 por um ensaio dedicado ao poeta angolano Agostinho Neto. Também, sem assumir qualquer responsabilidade, apoiou o ensaio de Onésimo Silveira “Consciencialização na Literatura Caboverdiana”, um ensaio ainda polémico; e a ele se deve a maior divulgação em França e no mundo do poema nacionalista “O Capitão Ambrósio”, da autoria de Gabriel Mariano, que trouxe clandestinamente de Portugal. Em Paris, a partir de 1964, continuou ligado à literatura dos países de língua portuguesa, tendo publicado uma antologia na livraria Presença Africana, dirigida pelo senegalês Alioune Diop, livraria essa que foi o refúgio de todos os homens políticos africanos, principalmente das colónias portuguesas, como Mário de Andrade, Marcelino dos Santos, Amílcar Cabral e outros. Influenciou muitos jovens escritores das colónias portugueses ao nível da poesia , do ensaio e das artes plásticas, numa perspectiva da luta de libertação, o que marcou a revolução cultural nos respectivos países depois das Independências.
Desde os anos cinquenta, Alfredo Margarido aparece na imprensa caboverdiana através do Boletim de Cabo Verde, dirigido sabiamente pelo advogado Bento Levy, onde comenta as obras dos poetas e romancistas Claridosos que mais tarde foram incluídos no seu livro “Estudos sobre literaturas das Nações Africanas de Lingua Portuguesa”. Para o grande escritor caboverdiano António Aurélio Gonçalves, Alfredo Margarido era um crítico muito exigente mas que possuía um lugar especial na crítica da literatura dos países de língua portuguesa.
Conhecemo-nos nos meses que seguiram ao movimento dos estudantes de Maio de 1968 onde teve intervenções nos debates e reuniões que marcaram o movimento. O historiador Marc Ferro, de quem foi um grande colaborador, considerou-o como uma das figuras mais importantes dos debates universitários durante aquele período revolucionário de Maio de 1968. Comecei por frequentar a sua casa ao lado da Praça de Saint Michel, onde recebia estudantes das colónias portuguesas e muitos amigos portugueses, de que destaco o nosso Branquinho Pequeno, sempre de bom humor e aberto a todas as discussões. Depois residiu na Rua de Saint Hilaire, em seguida na rue Fagon em Paris V e ulteriormente na rua de l’Essai onde permaneceu até regressar definitivamente a Portugal, mas vivendo sempre perto do Quartier Latin que tanto marcou a sua vida universitária e política.
Teve também um papel importante ainda nos princípios dos anos setenta na introdução do ensino das literaturas dos países de língua portuguesa na Faculdade de Paris VIII – Vincennes a convite do Professor José Terra, do Departamento de Português. A introdução desta matéria nos estudos universitários ajudou muito os estudantes a descobrirem a verdadeira história dos respectivos países. Margarido incentivava os seus alunos caboverdianos, guineenses, angolanos, moçambicanos a fazerem teses e mestrados, como foi o meu caso, a lançarem-se no movimento associativo e a debater os problemas coloniais, pondo a sua biblioteca à disposição de todos. Em 1973 é convidado por Jean Copans a colaborar num célebre volume sobre a crítica da antropologia e do imperialismo, editado em 1975 pelas edições François Maspero, que põe em questão o papel da antropologia ao serviço do colonialismo português e do imperialismo. Ele demonstra que a antropologia nem sempre esteve ao lado dos combatentes da liberdade e acusa alguns antropólogos portugueses de terem fornecido as armas teóricas para a guerra colonial. E denuncia em especial o luso-tropicalismo, ou seja a falsa antropologia do brasileiro Gilberto Freire, que fazia do Brasil o modelo de integração racial quando foi o último país da América do Sul a abolir a escravatura. Aliás, teve desde 1957 um associado na crítica contra o antropólogo brasileiro Gilberto Freira na pessoa do poeta e romancista caboverdiano Baltasar Lopes da Silva, que escreveu “Cabo Verde, visto por Gilberto Freire”. O antropólogo brasileiro em visita às colónias portuguesas, a convite do Governo de Salazar, teria tecido alguns dislates sobre a cultura caboverdiana. Mais tarde, a partir de 1975, acompanhei-o no Centro de Recherches Africaines da Sorbonne, onde esteve associado a Michel Devisse, Yves Persan, Jean Boulègue em cursos sobre a história da África e de onde saíram alguns historiadores africanos, inclusive das antigas colónias portuguesas e mesmo de Portugal.
Os acontecimentos do 25 de Abril, que pôs termo ao regime de Salazar e abriu as portas à Independência das colónias, não o surpreenderam. Não, como muita gente pretende, que ele estivesse informado da intervenção do Movimento das Forças Armadas por um almirante estar casado com uma irmã dele, mas sim como resultado das suas próprias análises políticas. Era da opinião de que nenhum regime colonialista por mais forte que fosse a nível militar tinha conseguido triunfar contra os movimentos de libertação e que o regime cedo ou tarde iria também cair, como já tinha acontecido com os franceses ou os americanos no Vietname. Outro aspecto importante e que prova a sua fidelidade aos ideais da liberdade : manteve-se distante em relação aos governos estabelecidos nas antigas colónias portuguesas a partir do momento que se criaram os partidos únicos segundo o modelo leninista, embora as várias solicitações e convites dos governos que tão bem conhecera durante a luta de libertação.
Margarido reconhecia a influência da França no seu percurso literário e universitário. Dizia que a França o tinha transformado, afastando-o assim da literatura. Aqui conheceu novas disciplinas, teve excelentes professores e amigos, que foram determinantes na sua carreira universitária, como os historiadores Elikia M’bokolo, Jean Dévisse, Claude Meulassous, Jean Boulègue, Jean Pierre Chrétien, Marc Ferro, Henry Persan, Catherine Coquery-Virdrovich, e antropólogos como Jean Copans e Roger Bastide e outros.
Dizia sempre que a Independência não resolvia tudo e que teríamos de estar preparados para outros problemas: se como anti-fascista e anti-colonialista se venceu um combate contra o salazarismo e o colonialismo não estava convencido da libertação imediata da herança colonial ou do suicídio das classes como preconizara Amílcar Cabral durante a luta nas matas da Guiné Bissau. E a história deu-lhe razão. Admirador confesso da obra de Fernão Mendes Pinto, escreve em 1994 “As surpresas da flora no tempo dos descobrimentos”, a demonstrar que não foram somente as riquezas do subsolo e da escravatura que enriqueceram a Europa, mas também os conhecimentos técnicos trazidos das viagens e a descoberta de novas civilizações que modernizaram a Europa. Também a botânica e a culinária europeia receberam novas plantas que os marinheiros trouxeram da sua aventura pelo mundo e que revolucionaram a gastronomia, como a mandioca, a batata, o ananás, o cajueiro, feijões, tabaco, milho, o cacau das Américas, a malagueta do Senegal, a banana do Congo, a cola da África, a canela, o coqueiro, a noz moscada, o cravo, as mangas, o chá da Ásia, todas essas plantas trazidas no bojo dos navios portugueses que transformaram o Mundo e serão a maior contribuição das descobertas marítimas portuguesas para a humanidade.
Uma outra preocupação de Alfredo Margarido foi a de estreitar as relações entre Portugal e o mundo lusófono. Na emigração, viu novas relações de solidariedade entre os emigrantes lusófonos e tirou as lições necessárias para uma nova lusofonia. Frequentava os bidonvilles da região parisiense, onde viviam emigrantes de todas as origens e, desses contactos fraternos, tirou o célebre ensaio “Elogio do bidonville” (ver Latitudes n°5) em que demonstra a solidariedade e a riqueza espiritual dos portugueses e outras comunidades que ali viviam. Enquanto que muitos sociólogos somente viam a miséria material dos emigrantes nos bidonvilles, ele descobria uma grande riqueza espiritual nos emigrantes, solidários e unidos na luta pela emancipação económica e espiritual. Para que Portugal fosse pluricontinental no plano cultural e espiritual, teria de romper com o passado colonial que foi horrendo nas suas colónias e criar novas dinâmicas sociais, económicas e culturais e estabelecer relações de respeito e fraternidade com os povos dos outros continentes que sempre exigiram dignidade e respeito. E quando após a Independência de Cabo Verde os emigrantes caboverdianos, que tanto tinham investido em Portugal na construção urbana, viram serem-lhes negado a renovação dos passaportes portugueses pelo facto de não poderem provar a origem portuguesa ou, melhor, por serem pretos (o que provocou desempregos e mesmo expulsões destes dos países da União Europeia), Margarido entrou de novo na luta, condenando o Governo Português e as suas embaixadas e consulados. No ano de 2000 publica “A lusofonia e os lusófonos : novos mitos portugueses”, com uma critica actual à lusofonia proposta pela CPLP. Sem uma nova visão das relações entre os lusófonos, que aliás não deve excluir as diásporas lusófonas da Europa, África e Américas, a lusofonia não passa duma balela, como dizia o escritor caboverdiano Luiz romano. Em França, várias associações caboverdianas e portuguesas, como a Solidariedade Caboverdiana e ACAP 77, organizaram diversas manifestações culturais, entre as quais o Festival da Canção Lusófona que lançou vários artistas caboverdianos como Teófilo Chantre, Dulce Matias, John Andrade, etc. E foi do encontro nesses festivais que saiu o projecto da revista Latitudes em que ele colaborou ao lado de outros como Daniel Lacerda, José de Barros, Dominique Stoenesco, revista essa que ainda continua a sair trimestralmente. A CPLP não pode fazer simplesmente a lusofonia dos chefes de Estado: a lusofonia tem que ser, como propõe Margarido, uma lusofonia dos povos que não ignora as diásporas dos países de língua oficial portuguesa.
Alfredo Margarido era uma pessoa assídua, assim como o mano Branquinho Pequeno, em todas as actividades culturais da Associação dos Caboverdianos em França - Solidariedade Caboverdiana, para a qual convidava os amigos de passagem por Paris. Foi por isso que o convidei a escrever o prefácio ao “Folclore Caboverdiano” de Pedro Monteiro Cardoso que foi um alumbramento pela importância na revisão da história cultural e politica de Cabo Verde, iniciada nos fins do século XIX . Ficou assim demonstrada que a luta para os direitos cívicos e a literatura caboverdiana não começaram em 1936 com a revista Claridade e nem em 1956 com a criação do PAIGC por Amílcar Cabral. Neste prefácio ele estuda os nativistas como Luis Loff de Vasconcelos, Eugénio Tavares, José Lopes, Pedro Monteiro Cardoso, o movimento pan-africanista em que participaram muitos caboverdianos nos princípios do século XX, a importância da emigração caboverdiana na América do Norte e a influência desta não somente a nível económico em Cabo Verde, mas também no plano social e cultural e que serve de tema a Baltasar Lopes da Silva no célebre romance Chiquinho. A cultura caboverdiana e, em especial, a sua literatura enriqueceu-se com esse prefácio que permitiu que se fizesse um recuo de mais cinquenta anos no estudo da literatura e da vida política e social caboverdiana. Um poema dedicado a Karl Marx em 1913 e o uso da greve, nesse mesmo ano, nas Companhias Inglesas, resultante da experiência americana dos emigrantes caboverdianos, demonstram a existência, já nos princípios do século XX, de uma consciência social da classe trabalhadora em São Vicente.
É de assinalar a sua comunicação na Cidade Universitária de Paris na homenagem a Baltasar Lopes, em Maio de 1989, e o excelente artigo publicado na revista Lusotopie, em 1994, chamado “Pour une histoire des geo-politiques culturelles du Cap Vert”» em que, mais uma vez, explica a originalidade de Cabo Verde, tanto no plano étnico como cultural no espaço africano. Também em Cabo Verde, de 1982 a 1990, colaborou com muita constância no jornal católico Terra Nova com artigos profundos que permitiram a muitos patrícios repensarem Cabo Verde e libertarem-se do pensamento único imposto pelo PAIGC.
Mas a música e as artes plásticas não ficaram de lado: Margarido publicou vários artigos sobre os pintores Victor Teixeira (Angola) e Tchalé Figueira (Cabo Verde). Também na revista Latitudes publicou diversas notas sobre a música caboverdiana e em especial um estudo sobre o CD “Ex-ilhas” (14 poemas de Luiz Silva e musicados por Jovino dos Santos).
Ele reconhecia que o seu exílio, associado à sua vivência com as comunidades emigradas, alargou profundamente a sua visão de Portugal e do mundo. Perdeu a cor e foi tão normal que as pessoas que o liam pensassem que fosse negro e africano de Cabo Verde ou Angola. Foi, pela sua vivência, o verdadeiro lusófono necessário, o modelo a seguir, para a realização da lusofonia não baseada na cor, mas sim em novas relações históricas a serem criadas entre os povos, tal como ele próprio viveu no seio dos emigrantes que se exprimem oficialmente na língua portuguesa.
A sua tese de doutoramento sobre a literatura caboverdiana na Universidade de Sorbonne, que à ultima hora decidiu não entregar, explicava com pormenores essa viagem à literatura caboverdiana com os caboverdianos de várias gerações com quem conviveu de perto nas comunidades caboverdianas em Portugal, em São Tomé e Príncipe, em Angola e França, partilhando reflexões sobre Cabo Verde e em especial sobre a sua literatura, cultura e mesmo sobre a unidade Cabo Verde-Guiné, desde os pan-africanistas aos escritores mais modernos. No cinquentenário da revista Claridade apresentou uma comunicação histórica que merece referência em estudos literários sobre Cabo Verde.
Alfredo Margarido foi condecorado pelo Governo de Cabo Verde em 2002 com a Medalha de primeira classe do Vulcão. A sua morte foi sentida em todo o mundo de língua oficial portuguesa e nas diásporas desses países. Morreu de pé sempre a lutar pelas suas ideias e sempre cheio de projectos. Ele merece que o seu nome seja dado a ruas e praças em todo o mundo de língua oficial portuguesa.
Paris 15/12/2011
Luiz Silva
Um comentário:
Merece mais esta proposta de reconhecimento no espaço da CPLP. Pelo texto e informação... Obrigado!
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