17 de jun. de 2009

CONTO: ULISES A ESPERA DE PENÉLOPE

Ulisses a espera de Penélope.

Ulisses como todos os rapazes de S. Vicente tinha os olhos voltados para a baía do Porto Grande. Deslumbrado com os vapores da Blue Star e da Mala Real ancorados na baía da velha cratera em semicírculo, com o Monte – Cara, secularmente contemplando nuvens passando, como um poeta em silencio, Ulisses idealizava a distante Argentina, nas Américas…Um belo dia, enchendo-se de coragem, foi ter com António Cara Linda, um abastado negociante de barcos e velho amigo da família, para que o ajudasse, a realizar o seu sonho. Tirando o boné em sinal de respeito, entrou no enorme armazém do negociador, repleto com miríades de cordas, tintas, e objectos marítimos para ele desconhecidos, e no fundo do armazém, encontrou António Cara Linda sentado numa velha cadeira americana de vai vem, a moda dos Cow Boys, com as pernas estendidas numa mesa, repleta com papéis lendo um jornal desportivo… Sem rodeios, foi directo ao assunto e, expressando de forma clara o seu desejo, prometeu a António Cara Linda, jurando por Deus, ir trabalhar arduamente na terra das pampas, e um dia devolve-lo, a quantia do empréstimo para a sua viagem à terra das vacas infinitas, e de um tal de Jorge Luís Borges, um escritor cego…
Cara Linda, homem bondoso, antigo emigrante que, após trinta anos de dura labuta no mundo, tinha regressado endinheirado a cidade de Mindelo, compreendeu perfeitamente o direito de sonhar do rapaz, foi para com ele, generoso…

Anos mais tarde, depois de muitas vicissitudes, bem na vida, Ulisses era o mulato mais desejado de Doc Sur Buenos Aires. Bailava Tango melhor do que ninguém, trabalhava com primor, e tinha amealhado em pouco tempo, uma considerável fortuna, vendendo charutos de contrabando. Visitava frequentemente, alcovas e bordéis das belas senhoritas Portenhas, mas, sem nunca se esquecer, da sua Penélope, a mulata mais linda na ilha, que ele carregava religiosamente na sua carteira de couro argentino genuíno, numa bela fotografia a preto e branco…

Após uma longa troca epistolar com a princesa, que durou cinco anos, e cinco meses, pediu por correspondência, a mão da amada aos pais e, com grande felicidade, foi-lhe concedido a bênção dos progenitores… através de um procurador, após rígidas instruções de Ulisses, foram regrados todos os papéis num rigor burocrático colonial só visto, e meses depois, ficou marcado o dia do casamento por procuração, devido a ausência do noivo emigrante, na distante Argentina…


Naquele dia, a cidade brilhou! …E, contam os mais velhos da ilha, que Penélope é sem dúvida, até hoje, a mais linda de todas as noivas vistas neste burgo. Naquela data memorável, fora conduzida ao altar pelo excelentíssimo Sr. Doutor juiz, Manuel da Cunha e Sacramento Pais Ferreira, padrinho do enlace por consentimento do aventureiro Ulisses.
Célebre foi a festa do enlace, com centenas de convidados distintos na sala do Nho Jom Tolentino no bairro, Monte de Deus, onde tudo era foguetes, tambores e manjares, durante cinco dias sem parar…

Terminado a festança, duas semanas mais tarde, Penélope embarcou para Buenos Aires, numa noite de Fevereiro de um frio cortante, e um escuro de breu, em que a cacimba sem piedade, chicoteava as costas dos remadores se mi nus, do bote de António Cara Linda… Penélope como o coração apertado de saudade, triste embarcou no navio inglês, Faith, barco da mala real que rumava primeiro ao porto de Santos no Brasil, e logo a capital Argentina…
Com um ambíguo sentimento de curiosidade e saudade, Penélope deixou os pais no cais chorando, na companhia de alguns familiares, que acenavam a princesa com lanternas acesas no piche da noite tropical no velho cais da alfândega, com as suas gruas fálicas, fornicando a escuridão… Era a hora di bai… pensou a musa, lembrando-se por alguns segundos da belíssima morna do poeta Eugénio Tavares e, simultaneamente, escutar o chapinhar dos remos cadenciados do bote entrando e saindo da água salgada…

Com o paquete cortando o azul imenso do mar, num esforço titânico Penélope no segundo dia de viagem logra sair da sua cabine depois de ter vomitado as tripas coração, de tanto chorar, até não ter lágrimas para derramar tanta saudade… Com as pernas tremendo, dirige-se para o salão da nave e, ao entrar pela a porta adentro, depara com um passageiro Cabo-verdiano, um belo homem, com quem já tinha cruzado várias vezes, na pequena praça da cidade de Mindelo…O cavalheiro, de paletó branco e sapatos a duas cores, (preto e branco) brilhando impecavelmente, ao avistar a formosa mulata entrando, levanta-se do seu lugar, convida Penélope cordialmente para a sua mesa no amplo salão inglês, decorado com um enorme quadro com motivos de uma caçada, onde homens a cavalo, e uns sabujos raivosos, perseguem uma raposa, numa floresta deprimentemente escura. O pintor, um medíocre, com certa habilidade, logra transmitir para a tela uma certa atmosfera kitch…
Com o seu cabelo crespo preto de azeviche alisado com brilhantina a moda de Carlos Gardel e um bigode perfeitamente simétrico, o elegante homem é um aventureiro que reside em Salvador da Baía e regressa para o Brasil, após longas férias no arquipélago, terra onde o viu nascer.
Com seu ar de sedutor afro-latino, Penélope não consegue resistir ao charme do peralta, no quinto dia de navegação é seduzida de forma admirável, pelos gestos graciosos do cavalheiro, também as suas bonitas palavras, no belo e cantado português do Brasil… Fora desflorada com mestria num piscar de olhos pelo astuto António Cabo-Verde, malandro cafétão conhecido em todas as esquinas de Salvador. Apaixonam-se perdidamente, amam até a exaustão, com os ingleses da tripulação indiferentes, aos seus jogos de amor…
– Penélope, nunca chega ao seu suposto destino… Como disse um sábio: O destino?... A gente faz! …
Arrasado com esta fatalidade, e sem nunca perceber o destino da amada, louco de dor Ulisses perde a noção do tempo…
– Hoje, velho e andrajoso, com uma barba enorme e uns cabelos sujos desgrenhados feitos punhais prontos para espetar-lhe no seu coração destroçado, triste, Ulisses senta todos os dias no cais numero 7 em Doc Sur Buenos Aires acompanhado pelo seu cão Argos. Olha para o vazio, do imenso horizonte… Dizem que está esperando o fantasma da amada, que nunca chegou aos seus braços.

Tchale Figueira

6 comentários:

omar camilo disse...

e assim meu irmão, comenzei a leer este con to delicioso, junto con meu cheruto cohiba e un café expresso m a r a v i ll o s o. de pronto sonó o tel e tengo que sair urgente.PORRA.

Fonseca Soares disse...

Adorei... embora estivesse mais à espera - pelo meu estado de espírito momentâneo... e no que te diz respeito, para variar... - de um 'happy end'... Enfim, as tais 'curvas da vida', num cenário bem mindelense d'outrora.

Tchale Figueira disse...

Omar, continuas depois a leitura.

um abraço.

Tchale Figueira disse...

Tanks Fonseca, mas desta não foi o fim feliz, quiçá para a proxima.

Abraço

Wanasema disse...

Um belo conto apesar do final melancólico, Tchale!!! Gosto das histórias rompidas pela emigração e de como os sentimentos ficam abalados quando algo se perde por aí... Parabéns!!

Tchale Figueira disse...

Pois é meu caro Ricardo. Nem sempre os Ulisses chegam a Ìtaca e nem sempre as Penélopes esperam. Obrigado pela dica sobre Francis Bacon, um dos meus preferidos. Vou consultar o Museu. Um grande abraço.

Tchale