4 de mai. de 2009

CARTA DE UM ARTISTA BRASILEIRO: RACISMO

Oi, Tchale!
Tudo legal? Por aqui tudo bem comigo.

Rapaz, nossas relações étnico-raciais são extremamente complicadas. Nossa elite é branca e racista, e prega, através dos principais meios de comunicação (não sei se no seu país passa as novelas da TV Globo, é um óptimo exemplo), a harmonia racial. De fato, há essa harmonia sim, desde que o negro ocupe o seu lugar submisso na sociedade.

Aqui, não temos o hábito de ver o negro ou o mestiço ocupando os principais cargos em empresas, na política, na educação ou nas artes. Até no samba, o negro vem perdendo gradativamente o seu espaço. Sou carioca - Rio de Janeiro, moro no bairro de Vila Isabel (que tem a escola de samba do mesmo nome) bem próximo ao estádio do Maracanã. Nessas escolas de samba, os seus presidentes são brancos e ligados à contravenção (o famoso jogo-do-bicho), de uns 10/15 anos para cá, as chamadas Rainhas de Bateria, cargo que era oferecido para as passistas da comunidade/favela, agora é ocupado pelas atrizes/modelos da televisão. Uma ou outra é "moreninha", mas negra, se vc encontrar uma ou duas entre as escolas do grupo de elite, será muito.

No meio de arte contemporânea, Tchale, essa situação fica escancarada. Imagino o que os bailarinos que vc viu no programa da TV alemã devem ter sofrido. Depois, procure na internet os sites das principais companhias de dança do país como Grupo Corpo, Deborah Colker, Qasar e veja os seus componentes. Na literatura, a mesma coisa. O quadro se repetirá nas companhias teatrais e, será mais evidenciado nas artes plásticas.

Estudei quatro anos na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, a mais respeitada escola de arte do Brasil, nome fundamental para as nossas artes. Foi de lá que saiu a chamada Geração 80, que vc deve conhecer. No tempo que lá estive, negro ou mestiço que vi passar por lá era eu e mais três pessoas. E só. Se você ver os nomes de destaque da arte brasileira contemporânea, notará que são todos brancos e muito bem nascidos, como Cildo Meirelles, Nelson Leiner, Tunga, Adriana Varejão, Nelson Felix, Daniel Senise, Jorge Guinle Filho, Luiz Áquila....

O pior é que você não percebe nos trabalhos desses artistas, preocupações em problematizar essas questões étnico-raciais, ou olhar para este outro excluído. Digo-te que, não só pela sua genialidade mas também pela postura, Hélio Oiticica faz uma falta imensa a nossa arte.

Concordo com você quando diz que não devemos ver cores, raças etc. O problema é que em nosso país não há visibilidade para o negro e suas manifestações culturais. Aqui, o negro sofre um sério problema de autoestima, pois não encontra referenciais positivos para o que ele é. É muito preconceito, que vão desde o cabelo "duro" (este é um dos principais) ao tom da pele escura e "suja", e os lábios "carnudos" ou "beição". A mulher negra, se for do padrão tipo exportação: mulata gostosa (atente-se para o prefixo mula), poderá se dar bem pois está no imaginário masculino, mas será sempre vista como a amante ou a puta. Agora, se for feia, pobre e sem instrução como é a maioria... aí, meu caro, essa mulher estará f.... Dentro disso, Tchale, o que mais impressiona é quando você conversa com a criança negra e procura saber quais são os modelos de beleza que ela tem. A resposta será, no caso da menina, alguma atriz ou cantora loura, cabelos lisos, pele clara e de olhos azuis. Os meninos citarão algum branco que esteja em evidência na mídia. Não sei se você sabe, mas Ronaldo Fenômeno há alguns anos soltou uma declaração dizendo que era branco.

Quando você vier ao Rio de Janeiro, poderei ser seu guia. Andaremos pelos bairros, bares e galerias de arte da Zona Sul como as que se encontram no Leblon, Ipanema, Gávea e Jardim Botânico. Você não encontrará negros consumidores ou frequentando esses ambientes. Estarão lá trabalhando na limpeza, na segurança ou na portaria. Será chocante para você! E ainda temos que escutar que não há racismo neste país.

Cabo Verde

Juro que desde que passei a conhecer a literatura e os hábitos culturais de seu país, fiquei impressionado com a harmonia racial que vocês vivem. A Profa. Simone Caputo Gomes (USP) sempre comentou da horizontalidade feita pela sociedade cabo-verdiana, a questão do funco ao sobrado (acho que este é um título de um artigo do Gabriel Mariano, do livro cultura caboverdeana), que em Cabo Verde, diferente do Brasil, o negro e o mestiço tiveram oportunidade de atingir os andares de cima da sociedade. Ver negros ou mestiços em posição de destaque é algo raro e surpreendente aqui no Brasil. Esta talvez seja a minha maior curiosidade em conhecer o seu país.

Quando estive na USP - universidade de são paulo, em um congresso organizado pela referida professora no ano passado, ocasião que tive o prazer de conhecer o Mito, fiquei surpreso ao ver a quantidade de intelectuais e artistas negros ou mestiços em posição de destaque no seu país. Algo inimaginável para nós, aqui. Como exemplo dentro daquele evento, posso citar os professores universitários brasileiros presentes. Negros e mestiços não deveriam chegar aos 10%.

Nossa situação racial é triste, amigo Tchale. Creio que ainda levaremos uns cem anos para que ela melhore ou suavize, pois não encaramos o problema e o próprio negro não procura se valorizar. Sem que isso se transforme em racismo, é claro. Aliás, a ironia é que toda vez que o negro reivindica algo, é rapidamente acusado de racista. Por que será?

Quando quiser divulgar seu trabalho, exposições, lançamentos de livro etc. envie para eu publicar no blog.

Um grande abraço, amigo Tchale.
Ricardo Riso



http://ricardoriso.blogspot.com


2 comentários:

Anônimo disse...

concordo com tudo que foi passado pelo Riso , inclusive deparo com esta realidade desde que cheguei no rio de janeiro para estudar .Pode parecer estranho mas só começei a preocupar com quem eu sou, de onde vim e quais as minhas raízes ao desembarcar neste país extremamente racista onde se vende para mundo que aqui impera uma harmonia racial

Tchale Figueira disse...

É de facto caro anonimo uma triste realidade. Mas teremos que ser fortes na luta contra a ignorancia.

um abraço. Tchale